Vinte perguntas para Eduardo Coutinho

Geral
No encontro com Eduardo Coutinho promovido pela Flip no início do mês, não houve tempo para fazer algumas das perguntas previstas. Elas ficam registradas aqui, enquanto não surge uma oportunidade para ouvirmos as respostas dele.

*
No início deste ano, na entrevista dada ao programa Sangue Latino (direção: Felipe Nepomuceno; entrevistador: Eric Nepomuceno. Canal Brasil), Coutinho declarou:

“Eduardo Coutinho sei lá quem é. Sei lá quem eu sou. Não sei quem eu sou, nem por que eu faço documentários. Eu tento transferir tudo isso para o domínio do que eu faço. O que eu sou, eu não falo, por que eu nem sei. Mas é claro que não há condição de separar o que eu sou do que eu faço. Mas eu, enfim, tento não personalizar, não ter autobiografia que influa. Mas influi, por mais que eu tente que influa menos.”

1. Já que você não sabe quem é, Coutinho, como começaria uma conversa para tentar saber quem é Eduardo Coutinho?

Coutinho deixou de escrever há muitos anos, depois de ter escrito roteiros e feito crítica de cinema no Jornal do Brasil entre 1973 e 1974. No raro texto escrito em 1992, a pedido de Paulo Antonio Paranguá, reproduzido no livro O Olhar no Documentário (São Paulo: Cosac Naify, 2013), Coutinho diz que se sente “angustiado além da medida […] diante do compromisso de escrever quatro a cinco laudas sobre a questão do olhar no documentário cinematográfico e na televisão”. E que “depois de completado o compromisso”, sente-se “covarde, omisso, superficial e reza aos deuses para que não seja interpretado, compreendido através desses textos de compromisso, ‘médios’, sem sangue nem paixão.”

2. Por que, então, você aceita esses compromissos, Coutinho? Inclusive encontros como o da Flip, diante de uma plateia de 850 pessoas, transmitida para um telão que tem capacidade para outras 1400.

3. Você tem prazer em se “sentir angustiado além da medida, covarde, omisso, superficial”?

Trabalho recente

Em duas gravações recentes, a primeira feita em outubro do ano passado, e a outra em janeiro deste ano, Coutinho voltou a conversar, depois de muitos anos, com personagens de três dos seus filmes mais conhecidos – Santo Forte (1999), Edifício Master (2002) e Cabra Marcado para Morrer (1984).

4. Como foi a vida dos personagens de Cabra Marcado para Morrer nos trinta e poucos anos que separam as filmagens feitas no início da década de 1980 de quando você voltou a procurá-los, em janeiro deste ano, para gravar depoimentos a serem incluídos como extra do DVD do filme?

Elenco não profissional

Quando Vidas Secas foi lançado, em 1963, Coutinho estava preparando a filmagem de Cabra Marcado para Morrer, que seria um filme de ficção baseado em fatos reais ocorridos entre o final da década de 1950 e início dos anos 1960. O projeto tivera início quando Coutinho filmou, em 1962, o comício de protesto contra o assassinato de João Pedro Teixeira, a mando de fazendeiros da região. Nesse dia, conheceu Elizabeth Teixeira, viúva João Pedro.

Além do elenco de Vidas Secas, o de outro filme, também lançado no Rio em 1963 – Bandido Giuliano (1961), de Francesco Rosi – também é formado na maior parte por pessoas que não são atores profissionais.

Em Vidas Secas, apenas Átila Iório, no papel de Fabiano, era ator profissional. Orlando Macedo, o Soldado amarelo, era “ator de teatro e professor de arte dramática”, segundo informação de Nelson Pereira dos Santos. E Jofre Soares, que faz o fazendeiro, era oficial da Marinha aposentado, e só iniciara sua carreira de ator, em 1961, aos 43 anos, trabalhando em teatro amador e no circo, onde era um palhaço. Maria Ribeiro (Sinhá Vitória) não era atriz profissional, assim como Gilvan, Genival (os filhos de Fabiano e Sinhá Vitória) e o restante do elenco, todo arregimentado em Alagoas.

No caso de Bandido Giuliano (1961), só há dois atores profissionais, Frank Wolff (Gaspare Pisciotta) e Salvo Randono (Presidente da Corte de Assize). O resto do elenco foi reunido entre a população da Sicília.

Bandido Giuliano, além disso, tem um certo paralelo com Cabra Marcado para Morrer pois conta a história de Salvatore Giuliano, assassinado em circunstâncias mal explicadas, em 1950. Chamado de “o último bandido do povo” por Eric Hobsbawn, Giuliano negociava alimentos no mercado negro durante a Segunda Guerra, liderava um bando, viveu em confronto com a polícia, e teve influência política na luta pela independência da Sicília. No filme, Giuliano só aparece já morto no pátio, na funerária e como figura de camisa branca, vista de longe, correndo pelas montanhas.

5. Ter visto Vidas Secas e Bandido Giuliano, em 1963, teve alguma relação com sua opção de escalar camponeses para serem atores e Elizabeth Teixeira para fazer seu próprio papel na filmagem da primeira versão, ficcional, de Cabra Marcado para Morrer?

Filmagem interrompida

6. Poderia descrever a noite passada escondido no mato, em 1º de abril de 1964, com Elizabeth Teixeira, alguns integrantes da equipe de Cabra Marcado para Morrer e o camponês José Daniel do Nascimento quando a tropa do exército ocupou o Engenho Galileia, em Pernambuco, e as filmagens foram interrompidas? Você lembra no que pensou durante aquela noite?

Erro de cálculo

O próprio Coutinho definiu como um “erro de cálculo” seu segundo filme de longa-metragem, Faustão, inspirado em Henrique IV, de Shakespeare. Lançado em 1971, foi feito na crença de que o cangaço ainda era um tema popular. No ano seguinte, Leon Hirszman, um dos produtores de Faustão, fez S.Bernardo.

7. S.Bernardo afetou de alguma maneira sua avaliação negativa de Faustão?

Globo Repórter

Trabalhando no Globo Repórter, a partir de 1975, Coutinho diz ter feito “cinco ou seis filmes” que considera seus.

“Eu tinha que conviver diariamente com aquilo lá”, declarou, “com o que pode e o que não pode, com o assim e o assado. Era um trabalho miserável. […] No meu caso, em alguns momentos, era possível fazer alguma coisa que parecia documentário, mas eram raros os momentos.”

“Manter o programa no ar significava negociar dia a dia, nada estava ganho nunca.”

“Havia brechas…”, segundo Coutinho, “o que acho problem
ático, é que hoje não vejo brechas na televisão brasileira.”

E ainda:

“A luta nossa era driblar [o cara lá de cima] para ele poder aceitar ou não. […] E eu aprendi muito com o que eu fiz, em saber como deixar o que eu estava fazendo ser bom para poder entrar no ar como eu quisesse, minimamente.”

Mesmo sendo essas as condições, Coutinho reconhece que foram anos de aprendizado.

“Aprendi a conversar com as pessoas e a filmar… pela primeira vez na vida eu recebia um salário bom e pago em dia.”

“O que eu aprendi na televisão […] é que se você se posta a uma distância de três metros de seu interlocutor para não aparecer na imagem você não está conversando com a pessoa. Ninguém conversa a essa distância. Você tem de estar junto. Senão é como se houvesse uma barreira, a pessoa fala como se estivesse falando para a polícia ou para o ‘cinema’, quer dizer está prestando um depoimento. Mesmo procurando quebrar essa barreira, todo depoimento se parece com depoimento policial.”

8. Em retrospecto, diria que há uma tendência a idealizar esses seus nove a dez anos de trabalho no Globo Repórter?

9. Em que medida suas várias idas ao Nordeste para filmar o Globo Repórter representaram a possibilidade de preservar a esperança de retomar Cabra Marcado para Morrer?

10. Nessas viagens ao Nordeste, pensou alguma vez em procurar os personagens do Cabra, ou considerava isso arriscado, até 1979, quando foi promulgada a Lei de Anistia?

Diretor fantasma

11. O fato de você aparecer em vários momentos de Cabra Marcado para Morrer quando a filmagem foi retomada, em 1981, foi uma vingança edipiana do Globo Repórter, no qual era tabu o diretor aparecer?

Leituras

No exemplar do Coutinho de A Fábula Cinematográfica, de Jacques Rancière, há alguns trechos no prólogo e no capítulo “A ficção cinematográfica: Marker e a ficção da memória” assinalados com caneta esferográfica. Um desses trechos é:

“A memória é obra de ficção. […] O filme ‘documentário’ não é o contrário de um ‘filme de ficção’ pelo fato de nos mostrar imagens captadas na realidade cotidiana ou documentos de arquivo sobre eventos comprovados no lugar de utilizar atores para interpretar uma história inventada. Ele não opõe o viés [parti pris] do real à invenção ficcional. Simplesmente o real não é para ele um efeito a produzir. Ele é um dado a entender […] O cinema ‘documentário’ é um modo da ficção ao mesmo tempo mais homogêneo e mais complexo.”

12. Você poderia comentar esse trecho?

Crítica

Gracialiano Ramos escreveu, a respeito de Angústia, que sempre achou “absurdos os elogios concedidos a este livro, e alguns, verdadeiros disparates, me exasperaram, pois nunca tive semelhança com Dostoievski nem com outros gigantes. O que sou é uma espécie de Fabiano […]”.

13. Você sente alguma afinidade com essa faceta autodepreciativa do Graciliano Ramos?

14. Como recebe as referências feitas pela crítica, a propósito de alguns dos seus filmes, a Deleuze, Bourdieu e Borges?

Ao participar da mesa redonda “Homenagem a Jean-Claude Bernardet”, realizada durante o Festival É Tudo Verdade, em 2006, referindo-se ao período em que trabalhou na Rede Globo, a partir de 1975, no programa Globo Repórter, antes de retomar o projeto de Cabra Marcado para Morrer, você disse que

“[…] antes de fazer o Cabra, uns dez anos… 75, 76, eu estava na televisão e… pretendia voltar [a fazer cinema] mas não sabia como […] uma coisa imantada, que eu lia e me provocava todo o tempo era o que o Jean-Claude escrevia nos anos 70 e 80. Basicamente, sobre o documentário, mas não só. […] mas no período em que eu pensava em fazer o Cabra eu me alimentei, é como se eu fizesse […] eu fiz o Cabra um pouco do jeito que eu fiz em resposta às questões que o Jean-Claude colocava. E a partir de uma crítica […] que também vinha um pouco dele […] do que o Cinema Novo fazia com os pobres etc. […] eu fiz o filme um pouco para ele.”

Nesses textos do Jean-Claude aos quais você se refere, entre outras coisas, ele critica o uso do narrador off como “voz do saber” que não fala de si, mas só dos outros; a maneira de conduzir as entrevistas em que “o entrevistado só fala quando perguntado”; o fato do “entrevistador não aparecer na tela”; o “intelectual progressista que espera que o povo aja” mas elabora uma imagem passiva desse povo e toma a palavra, falando pelo povo etc.

15. Eram essas as questões que lhe provocavam quando lia o que Jean-Claude escrevia sobre os documentários brasileiros na década de 1970?

Decálogo e dogma

Sintetizando várias entrevistas do Coutinho, pode-se dizer que a partir de Santo Forte (1999) ele conversa com pessoas anônimas, que tem pouco a perder e que falam da vida privada. O que interessa a ele são as digressões, hesitações, retomadas de texto, gaguejadas, lapsos extraordinários, o acaso, a surpresa e a incerteza do resultado. Ele considera que essas conversas dão certo quando não são pergunta e resposta, mas um ato colaborativo. No ato de filmagem, a pessoa diz alguma coisa que nunca vai repetir, nunca disse antes ou dirá depois. Surge naquele momento. E isso não é pingue-pongue. O diretor trabalha na incerteza, na ignorância, porque não sabe o que é a vida do outro. Lida com o problema de saber quando perguntar, o quê perguntar. Para Coutinho, o documentário é baseado na possibilidade de erro humano. Até hoje acontece de ele perguntar na hora em que não deveria e o silêncio acaba. Ou faz a pergunta errada. Às vezes consegue fazer a pergunta certa. A conversa, segundo ele, depende da proximidade, da interação entre os participantes, de um “espaço favorável aos dois” e deles não se conhecerem.

16. Esse é seu decálogo, Coutinho?

17. Existe um dogma Coutinho, Coutinho?

Limites do documentário

No livro O Olhar no Documentário, mencionado acima, ao comentar a cena final de Peões (2004), João Salles escreve que ela revela “os limites do cinema documental, em particular sobre a crença ingênua de que todas as pontes podem ser cruzadas — existindo di
sposição sincera para estender a mão, o outro estará ao alcance. Estará, sim, mas restritamente: a parte que se furta à câmera será maior do que a que se revela; prevalecerá sempre o que não se pode saber do personagem.”

18. Você reconhece os limites do cinema documentário aos quais o João se refere? E admite que suas conversas têm esses limites?

19. Aceita, como diz o João, que “a parte que se furta à câmera será maior do que a que se revela” e “prevalecerá sempre o que não se pode saber do personagem”?

Dias de junho

20. Passados 50 anos desde as filmagens da UNE volante, feitas por você, em 1962, como aquele não tão jovem candidato a cineasta avalia hoje as transmissões da mídia NINJA e as múltiplas formas de registro e difusão pela internet que vêm sendo feitas, algumas por profissionais, mas a maioria por participantes não profissionais?

Se Coutinho escrevesse poderia publicar suas respostas neste blog. Como não escreve, o mais provável mesmo é que as vinte perguntas fiquem sem resposta. É pena. No encontro com Eduardo Coutinho promovido pela Flip no início do mês, não houve tempo para fazer algumas das perguntas previstas. Elas ficam registradas aqui, enquanto não surge uma oportunidade para ouvirmos as respostas dele.

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No início deste ano, na entrevista dada ao programa Sangue Latino (direção: Felipe Nepomuceno; entrevistador: Eric Nepomuceno. Canal Brasil), Coutinho declarou:

“Eduardo Coutinho sei lá quem é. Sei lá quem eu sou. Não sei quem eu sou, nem por que eu faço documentários. Eu tento transferir tudo isso para o domínio do que eu faço. O que eu sou, eu não falo, por que eu nem sei. Mas é claro que não há condição de separar o que eu sou do que eu faço. Mas eu, enfim, tento não personalizar, não ter autobiografia que influa. Mas influi, por mais que eu tente que influa menos.”

1. Já que você não sabe quem é, Coutinho, como começaria uma conversa para tentar saber quem é Eduardo Coutinho?

Coutinho deixou de escrever há muitos anos, depois de ter escrito roteiros e feito crítica de cinema no Jornal do Brasil entre 1973 e 1974. No raro texto escrito em 1992, a pedido de Paulo Antonio Paranguá, reproduzido no livro O Olhar no Documentário (São Paulo: Cosac Naify, 2013), Coutinho diz que se sente “angustiado além da medida […] diante do compromisso de escrever quatro a cinco laudas sobre a questão do olhar no documentário cinematográfico e na televisão”. E que “depois de completado o compromisso”, sente-se “covarde, omisso, superficial e reza aos deuses para que não seja interpretado, compreendido através desses textos de compromisso, ‘médios’, sem sangue nem paixão.”

2. Por que, então, você aceita esses compromissos, Coutinho? Inclusive encontros como o da Flip, diante de uma plateia de 850 pessoas, transmitida para um telão que tem capacidade para outras 1400.

3. Você tem prazer em se “sentir angustiado além da medida, covarde, omisso, superficial”?

Trabalho recente

Em duas gravações recentes, a primeira feita em outubro do ano passado, e a outra em janeiro deste ano, Coutinho voltou a conversar, depois de muitos anos, com personagens de três dos seus filmes mais conhecidos – Santo Forte (1999), Edifício Master (2002) e Cabra Marcado para Morrer (1984).

4. Como foi a vida dos personagens de Cabra Marcado para Morrer nos trinta e poucos anos que separam as filmagens feitas no início da década de 1980 de quando você voltou a procurá-los, em janeiro deste ano, para gravar depoimentos a serem incluídos como extra do DVD do filme?

Elenco não profissional

Quando Vidas Secas foi lançado, em 1963, Coutinho estava preparando a filmagem de Cabra Marcado para Morrer, que seria um filme de ficção baseado em fatos reais ocorridos entre o final da década de 1950 e início dos anos 1960. O projeto tivera início quando Coutinho filmou, em 1962, o comício de protesto contra o assassinato de João Pedro Teixeira, a mando de fazendeiros da região. Nesse dia, conheceu Elizabeth Teixeira, viúva João Pedro.

Além do elenco de Vidas Secas, o de outro filme, também lançado no Rio em 1963 – Bandido Giuliano (1961), de Francesco Rosi – também é formado na maior parte por pessoas que não são atores profissionais.

Em Vidas Secas, apenas Átila Iório, no papel de Fabiano, era ator profissional. Orlando Macedo, o Soldado amarelo, era “ator de teatro e professor de arte dramática”, segundo informação de Nelson Pereira dos Santos. E Jofre Soares, que faz o fazendeiro, era oficial da Marinha aposentado, e só iniciara sua carreira de ator, em 1961, aos 43 anos, trabalhando em teatro amador e no circo, onde era um palhaço. Maria Ribeiro (Sinhá Vitória) não era atriz profissional, assim como Gilvan, Genival (os filhos de Fabiano e Sinhá Vitória) e o restante do elenco, todo arregimentado em Alagoas.

No caso de Bandido Giuliano (1961), só há dois atores profissionais, Frank Wolff (Gaspare Pisciotta) e Salvo Randono (Presidente da Corte de Assize). O resto do elenco foi reunido entre a população da Sicília.

Bandido Giuliano, além disso, tem um certo paralelo com Cabra Marcado para Morrer pois conta a história de Salvatore Giuliano, assassinado em circunstâncias mal explicadas, em 1950. Chamado de “o último bandido do povo” por Eric Hobsbawn, Giuliano negociava alimentos no mercado negro durante a Segunda Guerra, liderava um bando, viveu em confronto com a polícia, e teve influência política na luta pela independência da Sicília. No filme, Giuliano só aparece já morto no pátio, na funerária e como figura de camisa branca, vista de longe, correndo pelas montanhas.

5. Ter visto Vidas Secas e Bandido Giuliano, em 1963, teve alguma relação com sua opção de escalar camponeses para serem atores e Elizabeth Teixeira para fazer seu próprio papel na filmagem da primeira versão, ficcional, de Cabra Marcado para Morrer?

Filmagem interrompida

6. Poderia descrever a noite passada escondido no mato, em 1º de abril de 1964, com Elizabeth Teixeira, alguns integrantes da equipe de Cabra Marcado para Morrer e o camponês José Daniel do Nascimento quando a tropa do exército ocupou o Engenho Galileia, em Pernambuco, e as filmagens foram interrompidas? Você lembra no que pensou durante aquela noite?

Erro de cál
culo

O próprio Coutinho definiu como um “erro de cálculo” seu segundo filme de longa-metragem, Faustão, inspirado em Henrique IV, de Shakespeare. Lançado em 1971, foi feito na crença de que o cangaço ainda era um tema popular. No ano seguinte, Leon Hirszman, um dos produtores de Faustão, fez S.Bernardo.

7. S.Bernardo afetou de alguma maneira sua avaliação negativa de Faustão?

Globo Repórter

Trabalhando no Globo Repórter, a partir de 1975, Coutinho diz ter feito “cinco ou seis filmes” que considera seus.

“Eu tinha que conviver diariamente com aquilo lá”, declarou, “com o que pode e o que não pode, com o assim e o assado. Era um trabalho miserável. […] No meu caso, em alguns momentos, era possível fazer alguma coisa que parecia documentário, mas eram raros os momentos.”

“Manter o programa no ar significava negociar dia a dia, nada estava ganho nunca.”

“Havia brechas…”, segundo Coutinho, “o que acho problemático, é que hoje não vejo brechas na televisão brasileira.”

E ainda:

“A luta nossa era driblar [o cara lá de cima] para ele poder aceitar ou não. […] E eu aprendi muito com o que eu fiz, em saber como deixar o que eu estava fazendo ser bom para poder entrar no ar como eu quisesse, minimamente.”

Mesmo sendo essas as condições, Coutinho reconhece que foram anos de aprendizado.

“Aprendi a conversar com as pessoas e a filmar… pela primeira vez na vida eu recebia um salário bom e pago em dia.”

“O que eu aprendi na televisão […] é que se você se posta a uma distância de três metros de seu interlocutor para não aparecer na imagem você não está conversando com a pessoa. Ninguém conversa a essa distância. Você tem de estar junto. Senão é como se houvesse uma barreira, a pessoa fala como se estivesse falando para a polícia ou para o ‘cinema’, quer dizer está prestando um depoimento. Mesmo procurando quebrar essa barreira, todo depoimento se parece com depoimento policial.”

8. Em retrospecto, diria que há uma tendência a idealizar esses seus nove a dez anos de trabalho no Globo Repórter?

9. Em que medida suas várias idas ao Nordeste para filmar o Globo Repórter representaram a possibilidade de preservar a esperança de retomar Cabra Marcado para Morrer?

10. Nessas viagens ao Nordeste, pensou alguma vez em procurar os personagens do Cabra, ou considerava isso arriscado, até 1979, quando foi promulgada a Lei de Anistia?

Diretor fantasma

11. O fato de você aparecer em vários momentos de Cabra Marcado para Morrer quando a filmagem foi retomada, em 1981, foi uma vingança edipiana do Globo Repórter, no qual era tabu o diretor aparecer?

Leituras

No exemplar do Coutinho de A Fábula Cinematográfica, de Jacques Rancière, há alguns trechos no prólogo e no capítulo “A ficção cinematográfica: Marker e a ficção da memória” assinalados com caneta esferográfica. Um desses trechos é:

“A memória é obra de ficção. […] O filme ‘documentário’ não é o contrário de um ‘filme de ficção’ pelo fato de nos mostrar imagens captadas na realidade cotidiana ou documentos de arquivo sobre eventos comprovados no lugar de utilizar atores para interpretar uma história inventada. Ele não opõe o viés [parti pris] do real à invenção ficcional. Simplesmente o real não é para ele um efeito a produzir. Ele é um dado a entender […] O cinema ‘documentário’ é um modo da ficção ao mesmo tempo mais homogêneo e mais complexo.”

12. Você poderia comentar esse trecho?

Crítica

Gracialiano Ramos escreveu, a respeito de Angústia, que sempre achou “absurdos os elogios concedidos a este livro, e alguns, verdadeiros disparates, me exasperaram, pois nunca tive semelhança com Dostoievski nem com outros gigantes. O que sou é uma espécie de Fabiano […]”.

13. Você sente alguma afinidade com essa faceta autodepreciativa do Graciliano Ramos?

14. Como recebe as referências feitas pela crítica, a propósito de alguns dos seus filmes, a Deleuze, Bourdieu e Borges?

Ao participar da mesa redonda “Homenagem a Jean-Claude Bernardet”, realizada durante o Festival É Tudo Verdade, em 2006, referindo-se ao período em que trabalhou na Rede Globo, a partir de 1975, no programa Globo Repórter, antes de retomar o projeto de Cabra Marcado para Morrer, você disse que

“[…] antes de fazer o Cabra, uns dez anos… 75, 76, eu estava na televisão e… pretendia voltar [a fazer cinema] mas não sabia como […] uma coisa imantada, que eu lia e me provocava todo o tempo era o que o Jean-Claude escrevia nos anos 70 e 80. Basicamente, sobre o documentário, mas não só. […] mas no período em que eu pensava em fazer o Cabra eu me alimentei, é como se eu fizesse […] eu fiz o Cabra um pouco do jeito que eu fiz em resposta às questões que o Jean-Claude colocava. E a partir de uma crítica […] que também vinha um pouco dele […] do que o Cinema Novo fazia com os pobres etc. […] eu fiz o filme um pouco para ele.”

Nesses textos do Jean-Claude aos quais você se refere, entre outras coisas, ele critica o uso do narrador off como “voz do saber” que não fala de si, mas só dos outros; a maneira de conduzir as entrevistas em que “o entrevistado só fala quando perguntado”; o fato do “entrevistador não aparecer na tela”; o “intelectual progressista que espera que o povo aja” mas elabora uma imagem passiva desse povo e toma a palavra, falando pelo povo etc.

15. Eram essas as questões que lhe provocavam quando lia o que Jean-Claude escrevia sobre os documentários brasileiros na década de 1970?

Decálogo e dogma

Sintetizando várias entrevistas do Coutinho, pode-se dizer que a partir de Santo Forte (1999) ele conversa com pessoas anônimas, que tem pouco a perder e que falam da vida privada. O que interessa a ele são as digressões, hesitações, retomadas de texto, gaguejadas, lapsos extraordinários, o acaso, a surpresa e a incerteza do resultado. Ele considera que essas conversas dão certo quando não são pergunta e resposta, mas um ato colaborativo. No ato
de filmagem, a pessoa diz alguma coisa que nunca vai repetir, nunca disse antes ou dirá depois. Surge naquele momento. E isso não é pingue-pongue. O diretor trabalha na incerteza, na ignorância, porque não sabe o que é a vida do outro. Lida com o problema de saber quando perguntar, o quê perguntar. Para Coutinho, o documentário é baseado na possibilidade de erro humano. Até hoje acontece de ele perguntar na hora em que não deveria e o silêncio acaba. Ou faz a pergunta errada. Às vezes consegue fazer a pergunta certa. A conversa, segundo ele, depende da proximidade, da interação entre os participantes, de um “espaço favorável aos dois” e deles não se conhecerem.

16. Esse é seu decálogo, Coutinho?

17. Existe um dogma Coutinho, Coutinho?

Limites do documentário

No livro O Olhar no Documentário, mencionado acima, ao comentar a cena final de Peões (2004), João Salles escreve que ela revela “os limites do cinema documental, em particular sobre a crença ingênua de que todas as pontes podem ser cruzadas — existindo disposição sincera para estender a mão, o outro estará ao alcance. Estará, sim, mas restritamente: a parte que se furta à câmera será maior do que a que se revela; prevalecerá sempre o que não se pode saber do personagem.”

18. Você reconhece os limites do cinema documentário aos quais o João se refere? E admite que suas conversas têm esses limites?

19. Aceita, como diz o João, que “a parte que se furta à câmera será maior do que a que se revela” e “prevalecerá sempre o que não se pode saber do personagem”?

Dias de junho

20. Passados 50 anos desde as filmagens da UNE volante, feitas por você, em 1962, como aquele não tão jovem candidato a cineasta avalia hoje as transmissões da mídia NINJA e as múltiplas formas de registro e difusão pela internet que vêm sendo feitas, algumas por profissionais, mas a maioria por participantes não profissionais?

Se Coutinho escrevesse poderia publicar suas respostas neste blog. Como não escreve, o mais provável mesmo é que as vinte perguntas fiquem sem resposta. É pena. No encontro com Eduardo Coutinho promovido pela Flip no início do mês, não houve tempo para fazer algumas das perguntas previstas. Elas ficam registradas aqui, enquanto não surge uma oportunidade para ouvirmos as respostas dele.

*
No início deste ano, na entrevista dada ao programa Sangue Latino (direção: Felipe Nepomuceno; entrevistador: Eric Nepomuceno. Canal Brasil), Coutinho declarou:

“Eduardo Coutinho sei lá quem é. Sei lá quem eu sou. Não sei quem eu sou, nem por que eu faço documentários. Eu tento transferir tudo isso para o domínio do que eu faço. O que eu sou, eu não falo, por que eu nem sei. Mas é claro que não há condição de separar o que eu sou do que eu faço. Mas eu, enfim, tento não personalizar, não ter autobiografia que influa. Mas influi, por mais que eu tente que influa menos.”

1. Já que você não sabe quem é, Coutinho, como começaria uma conversa para tentar saber quem é Eduardo Coutinho?

Coutinho deixou de escrever há muitos anos, depois de ter escrito roteiros e feito crítica de cinema no Jornal do Brasil entre 1973 e 1974. No raro texto escrito em 1992, a pedido de Paulo Antonio Paranguá, reproduzido no livro O Olhar no Documentário (São Paulo: Cosac Naify, 2013), Coutinho diz que se sente “angustiado além da medida […] diante do compromisso de escrever quatro a cinco laudas sobre a questão do olhar no documentário cinematográfico e na televisão”. E que “depois de completado o compromisso”, sente-se “covarde, omisso, superficial e reza aos deuses para que não seja interpretado, compreendido através desses textos de compromisso, ‘médios’, sem sangue nem paixão.”

2. Por que, então, você aceita esses compromissos, Coutinho? Inclusive encontros como o da Flip, diante de uma plateia de 850 pessoas, transmitida para um telão que tem capacidade para outras 1400.

3. Você tem prazer em se “sentir angustiado além da medida, covarde, omisso, superficial”?

Trabalho recente

Em duas gravações recentes, a primeira feita em outubro do ano passado, e a outra em janeiro deste ano, Coutinho voltou a conversar, depois de muitos anos, com personagens de três dos seus filmes mais conhecidos – Santo Forte (1999), Edifício Master (2002) e Cabra Marcado para Morrer (1984).

4. Como foi a vida dos personagens de Cabra Marcado para Morrer nos trinta e poucos anos que separam as filmagens feitas no início da década de 1980 de quando você voltou a procurá-los, em janeiro deste ano, para gravar depoimentos a serem incluídos como extra do DVD do filme?

Elenco não profissional

Quando Vidas Secas foi lançado, em 1963, Coutinho estava preparando a filmagem de Cabra Marcado para Morrer, que seria um filme de ficção baseado em fatos reais ocorridos entre o final da década de 1950 e início dos anos 1960. O projeto tivera início quando Coutinho filmou, em 1962, o comício de protesto contra o assassinato de João Pedro Teixeira, a mando de fazendeiros da região. Nesse dia, conheceu Elizabeth Teixeira, viúva João Pedro.

Além do elenco de Vidas Secas, o de outro filme, também lançado no Rio em 1963 – Bandido Giuliano (1961), de Francesco Rosi – também é formado na maior parte por pessoas que não são atores profissionais.

Em Vidas Secas, apenas Átila Iório, no papel de Fabiano, era ator profissional. Orlando Macedo, o Soldado amarelo, era “ator de teatro e professor de arte dramática”, segundo informação de Nelson Pereira dos Santos. E Jofre Soares, que faz o fazendeiro, era oficial da Marinha aposentado, e só iniciara sua carreira de ator, em 1961, aos 43 anos, trabalhando em teatro amador e no circo, onde era um palhaço. Maria Ribeiro (Sinhá Vitória) não era atriz profissional, assim como Gilvan, Genival (os filhos de Fabiano e Sinhá Vitória) e o restante do elenco, todo arregimentado em Alagoas.

No caso de Bandido Giuliano (1961), só há dois atores profissionais, Frank Wolff (Gaspare Pisciotta) e Salvo Randono (Presidente da Corte de Assize). O resto do elenco foi reunido entre a população da Sicília.

Bandido Giuliano, além disso, tem um certo paralelo com Cabra Marcado para Morrer pois conta a história de Salvatore Giuliano, assassinado em ci
rcunstâncias mal explicadas, em 1950. Chamado de “o último bandido do povo” por Eric Hobsbawn, Giuliano negociava alimentos no mercado negro durante a Segunda Guerra, liderava um bando, viveu em confronto com a polícia, e teve influência política na luta pela independência da Sicília. No filme, Giuliano só aparece já morto no pátio, na funerária e como figura de camisa branca, vista de longe, correndo pelas montanhas.

5. Ter visto Vidas Secas e Bandido Giuliano, em 1963, teve alguma relação com sua opção de escalar camponeses para serem atores e Elizabeth Teixeira para fazer seu próprio papel na filmagem da primeira versão, ficcional, de Cabra Marcado para Morrer?

Filmagem interrompida

6. Poderia descrever a noite passada escondido no mato, em 1º de abril de 1964, com Elizabeth Teixeira, alguns integrantes da equipe de Cabra Marcado para Morrer e o camponês José Daniel do Nascimento quando a tropa do exército ocupou o Engenho Galileia, em Pernambuco, e as filmagens foram interrompidas? Você lembra no que pensou durante aquela noite?

Erro de cálculo

O próprio Coutinho definiu como um “erro de cálculo” seu segundo filme de longa-metragem, Faustão, inspirado em Henrique IV, de Shakespeare. Lançado em 1971, foi feito na crença de que o cangaço ainda era um tema popular. No ano seguinte, Leon Hirszman, um dos produtores de Faustão, fez S.Bernardo.

7. S.Bernardo afetou de alguma maneira sua avaliação negativa de Faustão?

Globo Repórter

Trabalhando no Globo Repórter, a partir de 1975, Coutinho diz ter feito “cinco ou seis filmes” que considera seus.

“Eu tinha que conviver diariamente com aquilo lá”, declarou, “com o que pode e o que não pode, com o assim e o assado. Era um trabalho miserável. […] No meu caso, em alguns momentos, era possível fazer alguma coisa que parecia documentário, mas eram raros os momentos.”

“Manter o programa no ar significava negociar dia a dia, nada estava ganho nunca.”

“Havia brechas…”, segundo Coutinho, “o que acho problemático, é que hoje não vejo brechas na televisão brasileira.”

E ainda:

“A luta nossa era driblar [o cara lá de cima] para ele poder aceitar ou não. […] E eu aprendi muito com o que eu fiz, em saber como deixar o que eu estava fazendo ser bom para poder entrar no ar como eu quisesse, minimamente.”

Mesmo sendo essas as condições, Coutinho reconhece que foram anos de aprendizado.

“Aprendi a conversar com as pessoas e a filmar… pela primeira vez na vida eu recebia um salário bom e pago em dia.”

“O que eu aprendi na televisão […] é que se você se posta a uma distância de três metros de seu interlocutor para não aparecer na imagem você não está conversando com a pessoa. Ninguém conversa a essa distância. Você tem de estar junto. Senão é como se houvesse uma barreira, a pessoa fala como se estivesse falando para a polícia ou para o ‘cinema’, quer dizer está prestando um depoimento. Mesmo procurando quebrar essa barreira, todo depoimento se parece com depoimento policial.”

8. Em retrospecto, diria que há uma tendência a idealizar esses seus nove a dez anos de trabalho no Globo Repórter?

9. Em que medida suas várias idas ao Nordeste para filmar o Globo Repórter representaram a possibilidade de preservar a esperança de retomar Cabra Marcado para Morrer?

10. Nessas viagens ao Nordeste, pensou alguma vez em procurar os personagens do Cabra, ou considerava isso arriscado, até 1979, quando foi promulgada a Lei de Anistia?

Diretor fantasma

11. O fato de você aparecer em vários momentos de Cabra Marcado para Morrer quando a filmagem foi retomada, em 1981, foi uma vingança edipiana do Globo Repórter, no qual era tabu o diretor aparecer?

Leituras

No exemplar do Coutinho de A Fábula Cinematográfica, de Jacques Rancière, há alguns trechos no prólogo e no capítulo “A ficção cinematográfica: Marker e a ficção da memória” assinalados com caneta esferográfica. Um desses trechos é:

“A memória é obra de ficção. […] O filme ‘documentário’ não é o contrário de um ‘filme de ficção’ pelo fato de nos mostrar imagens captadas na realidade cotidiana ou documentos de arquivo sobre eventos comprovados no lugar de utilizar atores para interpretar uma história inventada. Ele não opõe o viés [parti pris] do real à invenção ficcional. Simplesmente o real não é para ele um efeito a produzir. Ele é um dado a entender […] O cinema ‘documentário’ é um modo da ficção ao mesmo tempo mais homogêneo e mais complexo.”

12. Você poderia comentar esse trecho?

Crítica

Gracialiano Ramos escreveu, a respeito de Angústia, que sempre achou “absurdos os elogios concedidos a este livro, e alguns, verdadeiros disparates, me exasperaram, pois nunca tive semelhança com Dostoievski nem com outros gigantes. O que sou é uma espécie de Fabiano […]”.

13. Você sente alguma afinidade com essa faceta autodepreciativa do Graciliano Ramos?

14. Como recebe as referências feitas pela crítica, a propósito de alguns dos seus filmes, a Deleuze, Bourdieu e Borges?

Ao participar da mesa redonda “Homenagem a Jean-Claude Bernardet”, realizada durante o Festival É Tudo Verdade, em 2006, referindo-se ao período em que trabalhou na Rede Globo, a partir de 1975, no programa Globo Repórter, antes de retomar o projeto de Cabra Marcado para Morrer, você disse que

“[…] antes de fazer o Cabra, uns dez anos… 75, 76, eu estava na televisão e… pretendia voltar [a fazer cinema] mas não sabia como […] uma coisa imantada, que eu lia e me provocava todo o tempo era o que o Jean-Claude escrevia nos anos 70 e 80. Basicamente, sobre o documentário, mas não só. […] mas no período em que eu pensava em fazer o Cabra eu me alimentei, é como se eu fizesse […] eu fiz o Cabra um pouco do jeito que eu fiz em resposta às questões que o Jean-Claude colocava. E a partir de uma crítica […] que também vinha um pouco dele […] do que o Cinema Novo fazia com os pobres etc. […] eu fiz o filme um pouco para ele.”

Nesses textos do Jean-Claude aos quais você se refere, entre outras coisas, ele critica o uso do narrador off como “voz do saber” que não fala de si, mas só dos outros; a maneira de conduzir as entrevistas em que “o entrevistado só fala quando perguntado”; o fato do “entrevistador não aparecer na tela”; o “intelectual progressista que espera que o povo aja” mas elabora uma imagem passiva desse povo e toma a palavra, falando pelo povo etc.

15. Eram essas as questões que lhe provocavam quando lia o que Jean-Claude escrevia sobre os documentários brasileiros na década de 1970?

Decálogo e dogma

Sintetizando várias entrevistas do Coutinho, pode-se dizer que a partir de Santo Forte (1999) ele conversa com pessoas anônimas, que tem pouco a perder e que falam da vida privada. O que interessa a ele são as digressões, hesitações, retomadas de texto, gaguejadas, lapsos extraordinários, o acaso, a surpresa e a incerteza do resultado. Ele considera que essas conversas dão certo quando não são pergunta e resposta, mas um ato colaborativo. No ato de filmagem, a pessoa diz alguma coisa que nunca vai repetir, nunca disse antes ou dirá depois. Surge naquele momento. E isso não é pingue-pongue. O diretor trabalha na incerteza, na ignorância, porque não sabe o que é a vida do outro. Lida com o problema de saber quando perguntar, o quê perguntar. Para Coutinho, o documentário é baseado na possibilidade de erro humano. Até hoje acontece de ele perguntar na hora em que não deveria e o silêncio acaba. Ou faz a pergunta errada. Às vezes consegue fazer a pergunta certa. A conversa, segundo ele, depende da proximidade, da interação entre os participantes, de um “espaço favorável aos dois” e deles não se conhecerem.

16. Esse é seu decálogo, Coutinho?

17. Existe um dogma Coutinho, Coutinho?

Limites do documentário

No livro O Olhar no Documentário, mencionado acima, ao comentar a cena final de Peões (2004), João Salles escreve que ela revela “os limites do cinema documental, em particular sobre a crença ingênua de que todas as pontes podem ser cruzadas — existindo disposição sincera para estender a mão, o outro estará ao alcance. Estará, sim, mas restritamente: a parte que se furta à câmera será maior do que a que se revela; prevalecerá sempre o que não se pode saber do personagem.”

18. Você reconhece os limites do cinema documentário aos quais o João se refere? E admite que suas conversas têm esses limites?

19. Aceita, como diz o João, que “a parte que se furta à câmera será maior do que a que se revela” e “prevalecerá sempre o que não se pode saber do personagem”?

Dias de junho

20. Passados 50 anos desde as filmagens da UNE volante, feitas por você, em 1962, como aquele não tão jovem candidato a cineasta avalia hoje as transmissões da mídia NINJA e as múltiplas formas de registro e difusão pela internet que vêm sendo feitas, algumas por profissionais, mas a maioria por participantes não profissionais?

Se Coutinho escrevesse poderia publicar suas respostas neste blog. Como não escreve, o mais provável mesmo é que as vinte perguntas fiquem sem resposta. É pena.

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