Memória: Cientista brasileiro que isolou vírus da dengue orientava olhar aos carentes

Geral

A vista concentrada entre tubos de ensaio, bicos aquecedores, reagentes, lâminas, o comportamento das células… Olhos fixos no microscópio, o companheiro inseparável, da manhã até de noite. O andar de um lado para outro, noites arregaladas sem dormir e a obsessão por encontrar respostas para males que afligiam o país. Quem conheceu o virologista brasileiro Hermann Gonçalves Schatzmayr, que morreu, aos 74 anos de idade, em 21 de junho de 2010 (há exatamente uma década, com falência múltipla dos órgãos), reconhece o legado no combate incansável dele a doenças como varíola, poliomielite, febre amarela e dengue, em batalhas que ele desenvolvia nos laboratórios da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Ele viveu a partir da segunda metade do século 20 momentos como os de agora, em que a ciência se vê desafiada por um vírus. Entre as heranças deixadas pelo cientista estão a dedicação e a formação de novos profissionais. Mas ele não ensinava apenas com base no que estavam nos livros. O virologista fazia uma pergunta inusitada e recorrente aos novatos ou experientes pesquisadores: “já olhou pela janela?”.

Foto: Peter Ilicciev / Fiocruz / Divulgação

O “olhar pela janela” era de alguém que via longe. Ele queria, primeiro, saber se os colegas reconheciam, ao menos, a realidade de comunidades carentes no Rio de Janeiro próximas ao local de trabalho. Em depoimento deixado um mês antes de morrer, Schatzmayr explicou a origem da pergunta. “Basta que os pesquisadores olhem pela janela, se deparem com a carência das comunidades que nos cercam para se certificarem do quanto nosso trabalho é importante”, escreveu. Para a bióloga e cientista Monika Barth, a esposa, companheira da vida e da pesquisa por mais de quatro décadas, foi a dedicação e o olhar sensível de Hermann diante do mundo, que o tornaram um dos principais nomes da ciência do Brasil.

Hermann Gonçalves e Monika Barth

Hermann Gonçalves e Monika Barth. Foto: Acervo da família

Aliás, a sensibilidade é uma das lembranças mais fortes para a atual chefe do laboratório do Flavirus da Fiocruz, Ana Maria Bispo de Filippis. “Ele tinha uma frase que me marcou: ‘nós temos certeza de que temos muito a fazer pela ciência quando olhamos a situação em que as pessoas vivem’. É um estímulo para que a gente trabalhe bastante e tente encontrar soluções”.

O laboratório que ela dirige, além da pesquisa, desenvolvimento e inovação, presta serviços com diagnósticos de diferentes tipos de vírus. Ana Maria Bispo cita que Hermann a estimulou, por exemplo, a buscar, no ano 2000, o desenvolvimento de diagnóstico preciso de dengue e febre amarela por exame de PCR. O exemplo do professor a inspirou outras vezes, conforme assegura, depois que ele morreu. “Foi fundamental em toda a minha carreira pela forma como ele conduzia a pesquisa”. A cientista liderou, por exemplo, a equipe que detectou, em 2015, a presença do zika no líquido amniótico de gestantes.

Já a médica Rita Nogueira trabalhou com Hermann Schatzmayr por 35 anos. “Ele tinha interesse muito grande no aperfeiçoamento profissional de sua equipe. Trata-se de uma pessoa muito respeitada no Brasil e no exterior. Ele era muito generoso em compartilhar o conhecimento dele. Um espírito público elevado. O foco dele era combater essas doenças que mais ameaçavam os mais vulneráveis. Ele teve um papel preponderante no combate a essas doenças, como a dengue”, afirma a cientista, que tratou do tema no doutorado e também nas metodologias avançadas de diagnóstico da doença.

Hermann Goncalves Schatzmayr, em 2009

Hermann Goncalves Schatzmayr. Foto: Arquivo da família

Visionário da dengue

Foi, inclusive, na década de 1980 que o cientista viu no horizonte o avanço de um perigo mortal que chegaria ao Brasil: a dengue em países das Américas Central e do Sul. “Ele anteviu a crise que a doença provocaria no país”, testemunha Monika Barth. De fato, Schatzmayr alertou que a epidemia chegaria ao Brasil e, por isso, pediu que a pesquisadora Rita Nogueira, que tinha então 38 anos de idade, fosse treinar e estudar o diagnóstico da doença em cursos na Venezuela, em março de 1986, e em Porto Rico, no mesmo ano, antes que chegasse ao Brasil. “Eu tive contato, por influência dele, com os principais pesquisadores do mundo. Ele se antecipou e isso foi decisivo para que pudéssemos responder à crise. Antes do surto de dengue, ele me indicou para ir estudar a doença e trazer a experiência. A doença disseminou-se no país após entrar pelo Rio de Janeiro”, diz Rita Nogueira. A cientista trouxe, ao final do curso, os monoclonais (os anticorpos), o que foi muito importante para a preparação das instituições de saúde. “Quando a doença chegou ao país seis meses depois, o laboratório estava preparado”, disse Monika Barth.

Em 1986, Hermann foi procurado pela prefeitura de Belford Roxo, no Rio de Janeiro por causa de relatos de pessoas com febre e manchas na pele. Também ocorreu em Nova Iguaçu. Com as amostras, no dia 28 de abril daquele ano, o cientista, com a equipe, isolou pela primeira vez no Brasil o vírus tipo 1 de dengue. A epidemia batia à porta. “Mais tarde, também fomos os primeiros a isolar os tipos 2 e 3 da vírus e nos tornamos centro de referência”, escreveu o cientista.

Rita Nogueira explica que o fato da equipe ter isolado o vírus impressionou pesquisadores em outros países que precisavam avançar no diagnóstico da doença. “Quando você isola o vírus, identifica o agente etiológico. O vírus replica na cultura e aquilo se torna substrato importante para fazer análise molecular das amostras. Quando você isola, não tem dúvida de ligar um quadro clínico com o agente que foi isolado”, explica. No caso da dengue, ele desabafava com a esposa que ninguém deveria morrer da doença porque era plenamente evitável.

Rita Nogueira e Hermann trabalharam juntos contra a dengue

Rita Nogueira e Hermann isolaram o vírus da degue na década de 1980. Foto: Jorge Carvalho/Fiocruz

 

Hermann Gonçalves e Rita Nogueira trabalharam juntos no combate à dengue

Hermann Gonçalves e Rita Nogueira trabalharam juntos no combate à dengue. Acervo pessoal da cientista

Dedicação ao país

Ana Maria Bispo diz que Hermann foi um exemplo, um guru e orientador do mestrado e doutorado da cientista. “Eu cheguei como estudante e fui recebida por ele no departamento de virologia. Ele incentivava muito os jovens a fazer cursos. Depois, quando fui contratada, fui trabalhar com ele nos estudos da poliomielite”. A cientista testemunha que ele era um visionário e angustiado diante dos problemas que surgiam. “Depois que a gente eliminou polio no país e na região das Américas, fui trabalhar em laboratórios em países que precisavam de apoio nosso, como a Índia”. Ana Maria atuou por cinco anos nos Estados Unidos na Organização Pan-Americana de Saúde (Opas).

Convicto de que deveria ajudar o país em que nasceu, principalmente os mais necessitados, Hermann Schatzmayr recusou todas as propostas para trabalhar em definitivo no exterior, segundo lembra a esposa e colega pesquisadora, Monika Barth, em uma união de 45 anos. Enquanto ele tinha o sobrenome de origem austríaca, da família do pai, ela nasceu na Alemanha e veio para o Brasil com os pais aos 10 anos de idade. “Tivemos várias oportunidades de trabalho. Mas sempre quisemos ficar no Brasil. Sabíamos que seríamos mais importantes aqui”. O casal se conheceu em 1962 no Instituto Oswaldo Cruz.

Hermann Schatzmayr -Fiocruz

Hermann Schatzmayr na Fiocruz. Foto: Acervo da família

Eles eram bolsistas e sonhavam iniciar carreiras de pesquisadores. Ela.trabalhava na área de botânica e ele, na virologia. Foi assim que ela o acompanhou nos primeiros tubos de ensaio. “Ele foi um dos principais fundadores da virologia no Brasil”. Ela recorda que até chegar ao objetivo, foi um longo caminho. Hermann era de família pobre e, mesmo com o desejo de cursar medicina, fez veterinária na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Nos quatro anos, ficou em alojamento. Foi nessa época que se interessou por estudar microbiologia e virologia. “Estudei amostras de uma grande epidemia de influenza que houve no Rio entre 1957 e 1958 e também trabalhei com febre amarela”, recordou Hermann em carta. Era o aluno de destaque das turmas. “No final do curso, ele tinha um carro velho e depois foi estudar na Áustria por um ano com pouco dinheiro”, destaca a esposa.

Hermann nos tempos de faculdade

Hermann nos tempos de faculdade no Rio de Janeiro. Foto: Acervo da família

Ele conseguiu uma bolsa no Instituto de Higiene da Universidade de Viena. Ficou na casa de uma tia e ganhava US$ 80 por mês. Enquanto economizava dinheiro para sobreviver, enriquecia-se com a experiência. Quando voltou ao Brasil, foi trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz em um laboratório para estudar a poliomielite, inclusive isolar o vírus, para estudar os surtos e a resposta à vacina Sabin, que começou a ser usada. A equipe cuidava da diluição e da distribuição da vacina para todo o país em uma época em que o produto só tinha validade de uma semana. Por isso, o tempo era fundamental para que não se perdessem as doses. “Ele fazia o controle da vacina, que era importada. Era muito trabalhoso. Depois ele buscou saber onde estava o poliovírus e fazia exames no esgoto e na água na Baía de Guanabara. Ele dizia que a gente precisava saber o percurso para poder se defender”, testemunha a esposa.

A luta contra a poliomielite foi, segundo Monika Barth, o primeiro grande alvo profissional dele. Após o doutorado na Alemanha, trabalhou na produção da vacina contra varíola e assumiu um laboratório para estudar a doença. Na sequência, ainda na década de 1960, assumiu a coordenação de virologia do instituto, cargo em que ficou por mais 30 anos. Assim, criou os primeiros laboratórios de pólio, hepatite e rubéola no Rio de Janeiro.

“Era a vida dele”

O trabalho fez com que Hermann se tornasse, por dois anos (a partir de 1990) presidente da Fiocruz. Depois dessa experiência, voltou para o laboratório estudar outros vírus. Era o lugar que mais gostava de ficar. E nunca deixou de trabalhar, produzir, escrever… “Ele sempre pensava mais nas pessoas mais necessitadas. A cabeça dele não parava 24 horas. Era a vida dele. Quando ele estava angustiado, não conseguia dormir. Ele era muito preocupado com as pessoas”, diz a companheira.. Para ela, o cientista tinha um padrão de trabalho e tem certeza de que , se estivesse vivo, estaria na linha de frente no combate ao coronavírus. “Ele estaria falando para tentar identificar as transformações do vírus, os diferentes comportamentos”. Além da esposa, Hermann deixou dois filhos, Rainer, que é engenheiro civil, Betina, bióloga, e cinco netos.

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Hermann e Monika, companheiros na vida e no trabalho. Foto: Acervo da família

Para Rita Nogueira, o virologista deixou um exemplo fundamental para as futuras gerações de pesquisadores: a dedicação, perseverança e a obsessão por responder perguntas, sanar mistérios. “Muitas vezes, ele chegava às 7h da manhã e saía às 22h”. Foi, para a ex-aluna, uma impressionante história de amor à ciência. Tanto é assim que a Fiocruz realiza, a cada dois anos, um evento que revela jovens cientistas e suas pesquisas, e que é batizado com o nome de Hermann Schatzmayr para homenagear o extenso legado dele. Uma década após à morte do pesquisador, cientistas que o conheceram garantem que o exemplo de 50 anos de carreira dele é inspiração permanente. Tanto para o movimento dos laboratórios como para as janelas abertas para a realidade que os cercam.

Hermann Schatzmayr

Hermann Schatzmayr nunca parou de trabalhar.  Foto: Fiocruz/Divulgação

Leia livro sobre a trajetória da virologia no Rio de Janeiro, de autoria do cientista

Leia revista de Manguinhos que trata mais sobre a vida de Hermann Schatzmayr

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